quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Projeto Hakeem ▬ Prólogo


     "Deuses. Intitulavam-se assim. E não havia alma corajosa o suficiente para sequer pensar em duvidar da verdade absoluta que era pregada. Dizia-se que suas origens divinas se confundiam e mesclavam com a origem do próprio Mundo. Seus poderes eram tão infinitos que, espontaneamente, a vida surgia deles. Humanos, Elfos, Gigantes; Lobos, cordeiros, águias, peixes; insetos, pequenos moluscos; plantas e árvores. Tudo surgira em meio ao poder que exalava por seus magníficos corpos.
     A fé nas divindades as tornavam mais poderosas ainda. Os Manistas, altos sacerdotes da religião, diziam que cada Deus inspirou uma forma de vida. Os Homens vinham de Terhak, o Esperto. Elfos eram crias de Lorhak, a Sábia. Ciclopes e Gigantes eram filhos de Berhak, o Bravo. E assim iam por todas as criaturas que habitavam o mundo de Hakeem - terra dos Deuses, em tradução -, como era antes o nome da continental terra.
    Passou-se o tempo, porém e as criaturas tornaram-se donas de suas próprias terras, construíam suas próprias sociedades e conviviam com suas diferenças. Os Homens eram os mais avançados em tecnologias e armas, mas não tinham, nem de perto, o físico dos Ciclopes, Gigantes e outros seres brutos, nem tinham a pureza para a conexão com a terra e magia dos Elfos. Todos os grandes povos tinham suas limitações, ficando em pé de igualdade. E assim foi por muito tempo.
     As eras passaram e os Homens invadiram Hakeem como pragas. Reproduziam-se em grande escala, pela gestação curta e fácil das mães. Avançaram demais em seus conhecimentos, mas não em sua sabedoria. Logo, se tornaram arrogantes e presunçosos o suficiente para decidir escravizar os outros povos. Os brutos descendentes de Berhak serviriam de mão de obra, os místicos filhos de Lorhak seriam ótimos curandeiros e mesmo força opressora, pois sabiam como guerrear – embora não gostassem de fazê-lo.
     Houve um grande debate entre os Deuses, pois sabiam que guerras entre os povos poderiam se iniciar. Sabiam que momentos difíceis geravam mais preces dos povos, o que os deixavam ainda mais poderosos. Mas sabiam que se um povo de sua tutela fosse injuriado, a balança de poder penderia pelo lado contrário. Eis que Terhak justificou seu nome. Sugeriu um tratado onde nenhum Deus deveria intervir por seu povo, não como Deus. Convenceu a todos que era o melhor a se fazer, que mesmo dominados, os povos continuariam seguindo suas tradições e cultos, talvez até mais fervorosos. Alguns concordaram, caindo na lábia de Terhak. Os outros também tiveram de aceitar o tratado, sem opção. Nenhum Deus se intrometeria como Deus na briga dos Povos, que durariam centenas de anos.
    Terhak sabia que os Homens também iriam impor sua religião sobre os povos dominados. Mas nem ao menos desconfiava do que iria acontecer. Inexplicavelmente, a cruzada humana pelo domínio virou extermínio generalizado de todas as raças que podia encontrar. Em desespero, Deuses se revoltaram contra Terhak, mas este lhes dissera que era uma surpresa até pra ele, mas que não poderiam voltar atrás na palavra, por mais que ele quisesse verdadeiramente impedir aquela loucura. E então, outro evento aconteceu. Um grupo de caça dos Homens encontrara uma pequena aldeia de Elfos, a maioria crianças enviadas para lá, na esperança de ser um local seguro das guerras. Em um ato de rara inconseqüencia, Lorhak interveio pelo seu povo e destruiu o grupo atacante. Terhak amava sua irmã, mas aquilo violava a Palavra Divina do Tratado e deveria ser punida com a destruição. Lorhak sabia, claro, mas não tinha outra escolha na hora e tomou a decisão. E quando voltou, ela mesma se pôs a frente do irmão, esperando sua punição.
     Terhak a amava, mas tinha de fazer valer a Palavra. Em um ultimo momento, Purhak, o Austero, interveio e colocou-se do lado da irmã. Outras divindades fizeram o mesmo. Assim como outra grande parte ficou do lado de Terhak... Inevitavelmente, a Guerra Divina teve início.
     A casa dos deuses nos véus azuis foi abalada pela Guerra. Hakeom, a Ilha Divina. De tamanho indescritível, a imensa plataforma de terra sólida, que era sustentada pelo poder dos deuses, perdeu a fonte de energia que a mantinha no ar e rasgou os céus, despencando em direção ao continente.
     Sem que os deuses pudessem reverter o destino infeliz da casa divina, o imenso bloco antes suspenso se chocou contra uma parte desabitada de Hakeem, bem próxima ao exato centro do mundo. O impacto foi apocalíptico.
     Como um meteoro mágico, ele teve potência pra destruir tudo ao seu redor, aniquilando uma área três, quatro vezes maior que suas próprias milhas de tamanho e simplesmente separou a terra de Hakeem. Dividiu-a em três grandes continentes e, curiosamente, separou os Humanos dos outros grandes Povos. O evento foi tão catastrófico que matou a maioria do povo dos Homens e provavelmente todos os outros povos, que já estavam em situação crítica. Os Deuses nunca mais foram vistos, mas a história era ainda contada e preces ainda eram feitas. Os Homens demoraram incontáveis eras para se reerguer e voltar ao antigo domínio... Incontáveis eras... "




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     - O senhor não deveria estar aqui.
     A voz firme do jovem Guarda da Ordem era dirigida pela segunda vez a um senhor muito, muito velho. Tão velho que, mesmo abaixado, tinha de se apoiar em um cajado quase maior que seu corpo para se equilibrar. Por algum motivo que mesmo o rapaz desconhecia, seu jovem corpo suava frio sob sua pomposa armadura azulada, que possuía nos ombros o selo do Leão, símbolo da Ordem.
     - Silêncio! – retrucou o velho, sem ao menos se dar ao trabalho de encarar o jovem ordenado. Estava ocupado demais, fascinado ao passar uma das mãos nas escrituras cuidadosamente esculpidas no enorme paredão a sua frente.
     - Senhor, terei de usar da força se continuar se recusando a sair. – A voz soava intranqüila. Pelos deuses, é só um velho! Acalme-se! Sentenciou em silêncio para si mesmo, enquanto apertara a mão na grande lança que segurava.
     O velho então se virou, com um horrendo sorriso de apenas dois dentes podres que praticamente encaixavam. Tão animado o sorriso, porém, que até se destacava entre a enorme barba branca. Ou que deveria ser branca, mas que possuía tons amarelados devido ao provável descuido.
     - Você fala demais, Cão! – O sorriso se desfizera em um rosto mal humorado antes de se voltar a parede e dar de ombros para o rapaz. - Agora saia daqui.
     O jovem ficou ligeiramente ofendido. Cão era o termo para os cavaleiros mais baixos da Ordem, e ele era um Guarda Real. Entretanto, ele sentia um temor estranho. Não entendia porque estava tão aflito diante do mirrado e frágil senhor. Tampouco imaginou como ele conseguiu entrar ali, na Sala Antiga.

     O lugar era segurado em sua entrada por dois Guardas Reais da Ordem, que ficavam a frente de sua única entrada. Apenas os Lordes e o Rei poderiam ter acesso àquela sala. Era impossível entrar sem ser notado. O grande salão tinha em suas paredes e teto, escrituras esculpidas em uma linguagem antiga e há muito perdida.. Muitos acreditavam que se tratava da Profecia das Criaturas, boato constantemente desmentido pela alta cúpula da Monarquia, para evitar pânico geral ou curiosidade demais.
     Entretanto, lá estava o barulhento senhor, que ainda tinha ousadia de cuspir no chão praticamente toda vez que terminava de passar a mão sobre os símbolos. O Guarda perdeu, enfim, a paciência. Colocou-se em posição de batalha, segurando a lança de maneira que, a qualquer movimento brusco do ancião, poderia facilmente perfura-lo com uma simples estocada. Simplesmente um procedimento padrão.
     - Senhor, terei de levá-lo até Lorde Martell. – Era o ultimato do ordenado, que falava do Lorde das Armas, braço direito do Rei e o comandante da Ordem, o exército real.
     O velho então deixou ereto o corpo, apoiando-se reforçadamente no cajado e ainda de costas para o Guarda. Virou-se lentamente, com todos os movimentos acusando a idade avançada, assim como suas arqueadas costas. Mesmo de pé, mal chegava a altura do peito do Guarda. Sua feição escondia um pesar terrível, embrenhada em sua cara suja e barba espessa e cheia.
     - Filho, diga a Martell que chegou a hora. – Bradou resoluto - Peça que olhe a Lua hoje! Tempos ruins virão!
     - O senhor mesmo poderá falar isso a ele, quando eu o lev-
     O rapaz não terminou a frase. Alguns sons mais saíram de sua garganta, mas eram ganidos abafados, como se estivesse sendo sufocado por uma força invisível que parecia agir dentro de seu corpo. Tudo começou a ficar escuro de repente, mas antes o jovem ainda pode ver o velho caminhando em direção a saída com o vagar típico de um ancião, resmungando qualquer coisa em qualquer língua maldita. Foi a última coisa que o jovem vira naquela noite antes de ouvir o som de sua lança ao cair, seguido pelo som de sua pesada armadura bater contra o chão duro, fazendo um som invadir a sala e se transformar em ecos que, curiosamente não aconteciam durante a conversa, mas que agora pareciam amplificar o ruído de modo havia ficado ensurdecedor. A ultima coisa que o jovem notou antes de cair em um profundo sono causado pela falta de ar.

2 comentários:

  1. Muito bom! Gostei mesmo! Você está dando as informações aos poucos, mas na medida certa. Já situou o ambiente e o problema, e um grande cataclisma já está anunciado. Com certeza que quero virar a página e saber o que vem em seguida.

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